(Foto: WikimediaCommons)

Dia da Abolição da Escravatura: como era o cenário do escravismo em Botucatu

A abolição da escravatura, que completa 134 anos nesta sexta-feira (13), foi um evento histórico de enormes proporções em nosso país. O Brasil foi o maior território escravagista do Ocidente e o último da América a proibir legalmente a escravidão.

Por cerca de 350 anos, o país teve mais de 4,5 milhões de escravos africanos, que trabalhavam forçadamente para os que tinham poder. Na cidade de Botucatu, o “Almanack da Provincia de São Paulo” de 1873 anunciava que havia 703 escravos e 613 escravas em nossa cidade, totalizando 1316 pessoas em situação de escravidão. No mesmo ano, a Província de São Paulo contava com 169.964 escravos e, em todo Império, 1.002.240.

Os dados foram apresentados pelo professor Cesar Mucio Silva, autor do livro “Processos-Crime: Escravidão e violência em Botucatu”, em entrevista exclusiva ao Jornal Audácia. Cesar é mestre em História pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da UNESP, campus de Assis e doutor pela USP.

Interessado pelo tema da escravidão desde os tempos de ginásio, Cesar conta que o assunto estava em alta no mundo acadêmico à época de sua graduação, no final dos anos 1980. “Naquele momento, final da década de 80 e início da de 90, o debate sobre a questão voltava ao centro das discussões e pesquisas em diversos grupos de pesquisadores de diferentes universidades brasileiras”, diz.

Assim, o então estudante de História na Faculdade de Ciências e Letras de Assis (UNESP) fez contato com professores que estavam trabalhando ou já haviam trabalhado com o tema da escravidão. Deste modo, Cesar foi aprovado em um projeto de pesquisa sobre o assunto apresentado para a FAPESP no ano de 1991, cedendo o direito a usufruir de uma bolsa de estudos de iniciação científica.

Anos depois, o mesmo assunto foi abordado no projeto de pesquisa apresentado ao programa de mestrado da mesma universidade. “Anos mais tarde, encorajado por alguns amigos, resolvi publicá-lo, em 2004, pela então Alameda Editorial”, conta o pesquisador.

Durante a elaboração da pesquisa, Cesar identificou que o escravo de Botucatu não era fixo em uma única atividade, mas sim “avulso” – ainda que escravo –, podendo trabalhar em toda e qualquer atividade: carregador, serviçal doméstico, vendedor ambulante, escravo de aluguel, roceiro, capinador, consertador de cercas, carroceiro, ajudante em bar e armazém, tropeiro, boiadeiro, domador de mulas, etc.

Desta forma, o pesquisador identificou que a estes escravos caberia a peculiaridade da denominação “escravos de quintal”, em vez de “escravos de eito”, que seriam aqueles que trabalham fixos em alguma atividade.

“São essas condições materiais de vida que o transforma em escravo ‘quase livre’, ou seja, por força dessas atribuições é que as relações entre escravos, senhores e homens livres eram relativamente flexíveis e atenuavam ‘o ser escravo em Botucatu’”, afirma o historiador. Ainda de acordo com Cesar, a indústria cafeeira foi o sistema econômico que mais se valeu da mão-de-obra escrava em suas atividades.

Assim como seu título indica, o livro parte dos registros de processos-crime impetrados contra os escravos e ex-escravos de Botucatu. Segundo o professor, “houve de tudo”: escravo contra escravo, escravo contra ex-escravo, escravo contra senhores, escravos contra homens livres, senhores contra escravos; homicídio (por envenenamento, facadas, pauladas, por arma de fogo etc.), roubo, furto, desordem, desobediência, embriaguez, porte proibido de arma de fogo, dentre outros.

“Muitos escravos se envolveram em brigas e rixas. Ao mau humor desses não escapavam nem brandos, nem negros, nem homens, nem mulheres, nem pobres, nem abastados. Não se furtavam em disputar amores, dinheiro e objetos, usando de violência ou não, com outros escravos, libertos e homens livres. Isso pode significar que em suas atitudes estavam refletidos padrões de comportamento e grau de vigilância da comunidade em que viviam. Ou seja, se assim agiram, foi também porque pairava sobre a comunidade local (Botucatu) uma certa tolerância para com essas práticas, sobretudo por se tratar de uma região que não girava na órbita daquelas outras com população escrava muito expressiva, grandes propriedades rurais e cultura cafeeira voltada à exportação”, conclui o pesquisador.

Como aconteceu a abolição da escravatura?

A abolição da escravatura foi o resultado da Lei Áurea, que proibiu legalmente a escravidão no Brasil. Depois de muita movimentação popular, mais de 700 mil escravos no país foram libertos dos seus serviços.

Ao contrário do que muitos pensam, a abolição da escravatura não aconteceu por empatia aos escravos. Esse foi um processo muito debatido, pois os escravos eram importantes para a economia do país e os fazendeiros com poder e terras não queriam libertar seus servos.

A primeira lei que flexibilizou a escravatura foi a Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico negreiro no Brasil, mas permitia que africanos que já estavam no Brasil continuassem escravos.

Depois da lei de proibição do tráfico, o Brasil iniciou oficialmente sua transição de um país escravocrata, mas o governo da época queria evitar o máximo de tempo possível essa liberdade aos africanos.

Os movimentos abolicionistas ganharam ainda mais força e o debate tornou-se uma pauta política. A pressão popular sobre o Império fez com que outras leis de flexibilização fossem criadas, como a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários. Assim, o Império se via com ainda mais dificuldade de evitar a abolição completa.

A abolição da escravatura no Brasil aconteceu no dia 13 de maio de 1888, quando o Império permitiu que os africanos fossem libertos por completo. A pressão de outros países, ação de grupos abolicionistas e revoltas intensas dos escravos, que se organizavam de várias formas, tornou a escravatura no Brasil insustentável.

Foi assim que a princesa Isabel, regente do país na época, assinou a Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravatura. Contudo, não houve nenhum suporte para os negros recém libertos: muitos acabaram em uma situação ainda mais precária, pois foram expulsos da terra dos fazendeiros e não tinham onde dormir. Percebemos, assim, que a abolição da escravatura não foi um feito humanitário.

Confira o livro do professor Cesar Silva Mucio

Processos-Crime – Escravidão e violência em Botucatu

Cesar Mucio Silva, Alameda Editorial, 122 págs., R$ 40.

A historiografia mundial sofreu uma transformação radical quando intelectuais como o francês Fernand Braudel (1902-1985), na célebre revista Annales, apontaram que a pesquisa histórica não precisava estar voltada apenas para questões nacionais que envolvem milhares ou mesmo milhões de pessoas. Nesse sentido, a análise da vida cotidiana, com seus hábitos, moda, festas, religiões e relações de gênero, por exemplo, passou a ganhar espaço. O mesmo ocorreu com a chamada história regional, ou seja, aquela que se debruça sobre realidades locais e permite ao leitor, a partir dali, traçar paralelos entre diversos micro e macrocosmos.

É na corrente da história regional que se insere o livro Processos-Crime: Escravidão e Violência em Botucatu. Doutorando em História na USP, Cesar Mucio Silva aborda a violência e a escravidão na cidade paulista de Botucatu, na segunda metade do século XIX. Segundo o historiador Paulo Alves, do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e professor aposentado da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis, na apresentação do livro, “o texto flui sem ser uma narrativa clássica, articulando os diálogos nos processos com o discurso analítico do autor”.

A base do trabalho são os processos-crime do século XIX, em que réus são escravos ou ex-escravos que praticaram delitos passionais ou que, por motivos aparentemente fúteis, tiveram que enfrentar a Justiça e seus procedimentos formais. Assim, além de estudar as relações entre escravos e homens livres em Botucatu, o autor reflete sobre a realidade histórica local do ponto de vista da prática da escravidão no Brasil. Cesar Mucio mostra que o escravo em Botucatu geralmente não era um trabalhador do eito, mas exercia diferentes funções, como carregador, serviçal doméstico, vendedor ambulante, consertador de cercas, carroceiro, ajudante em bar, tropeiro, boiadeiro ou domador de mulas. Por isso, suas relações com os senhores e os homens brancos eram relativamente flexíveis e atenuavam a condição do “ser escravo” em Botucatu.

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