Há 60 anos, uma boa parcela da sociedade brasileira se via acuada por uma possível ameaça comunista, representada por ações de grupos de esquerda e por declarações do então presidente João Goulart, o Jango.
Nos dias anteriores, Goulart assinou decretos que permitiam a desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias e barragens e estatizavam cinco refinarias de petróleo que operavam no país. Além disso, prometeu realizar as chamadas reformas de base, uma série de reformas administrativas, agrárias, financeiras e tributárias, incluindo um projeto de taxação de grandes fortunas, garantindo o que Goulart chamava de “justiça social”.
No contexto da da polarização entre os Estados Unidos e a União Soviética, estas ideias foram vistas como um passo em direção à implementação de uma ditadura socialista. A crise dos mísseis em Cuba, ápice da Guerra Fria, havia ocorrido apenas dois anos antes.
Visando conter este possível avanço da agenda comunista, diversos grupos sociais, como o clero, o empresariado e setores políticos diversos se organizaram em marchas, levando às ruas uma considerável quantidade de pessoas com o intuito de derrubar o governo Goulart. A primeira das marchas aconteceu no dia 19 de março de 1964 em São Paulo, reunindo cerca de 400 mil brasileiros.
A marcha paulistana foi o estopim para diversos eventos do gênero por todo o país e em Botucatu não foi diferente, embora tenha ocorrido onze dias após a deposição de Jango. “Impossível dizer, hoje, com segurança, porque isso aconteceu, numa cidade que respirava política, lugar onde o movimento operário tinha forte organização entre os ferroviários, e onde havia uma elite de contestadores que incluía de padres a militantes comunistas”, escreveu o historiador botucatuense João Figueroa em seu livro Boca do Sertão – História resumida e comentada da cidade de Botucatu.
A marcha de Botucatu foi ocorreu na noitinha de 10 de abril. Uma multidão calculada em pelo menos 3 mil pessoas começou, lentamente, a subir pela Avenida Dom Lúcio, descer pela Leônidas Cardoso, e virar a Amando de Barros, rumo à emblemática concha acústica da Praça do Paratodos, onde culminaria num estrondoso comício.
Eram muitas associações, irmandades, igrejas e populares que, tendo à frente o prefeito Amaral Amando de Barros e o arcebispo Dom Henrique Golland Trindade, percorreram as ruas da cidade, rezando e portando faixas. Uma delas pedia: “Pelas Reformas sem Comunismo”. À frente ia a Banda de Música, com o maestro Salim Kahil, tocando dobrados cívicos. Em seguida uma fileira de senhoras com rosários às mãos e, atrás, a população.
Na Praça do Paratodos, um dos mais concorridos atos políticos de nossa história teve início.
- Laurindo Izidoro Jaqueta iniciou os trabalhos, representando a Câmara Municipal.
- Em seguida, teve voz o universitário Humberto Migiolaro, presidente do Centro Acadêmico Pirajá da Silva.
- Depois, falou o operário Romeu Francisco Henriques, pelas Associações de Ferroviários, que acabara de lançar um manifesto apoiando o movimento militar.
- Em seguida, ocupou o microfone o reverendo Humberto Barbosa, pelas igrejas evangélicas.
- João Hipólito Martins, falando pelos espíritas de Botucatu, também se manifestou.
- Pelas mulheres botucatuenses, discursou Luiza Assumpção Teixeira.
- Enestor Rodrigues falou pelos trabalhadores.
- Também os que residem fora de Botucatu tiveram representação, através de Milton Marianno.
Por fim, os dois mais aguardados discursos: o do prefeito Amaral de Barros e o do arcebispo Dom Henrique Golland Trindade. Passava das 21h30m de 10 de abril de 1964 quando o comício se dispersou e as pessoas se dirigiram para suas residências, com a sensação do dever cumprido. Iria começar o mais longo jejum eleitoral da história brasileira.
Esta reportagem teve como base um capítulo do livro “Boca do Sertão – História resumida e comentada da cidade de Botucatu”, publicado pelo exímio historiador João Figueroa. O Jornal Audácia presta toda sua reverência ao trabalho realizado por Figueroa pela preservação histórica e cultural de Botucatu.
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