Uma pesquisa recém-publicada da UNESP de Botucatu ajuda a entender fatores genéticos que protegem algumas pessoas da infecção ou até mesmo de desenvolver a forma grave da COVID-19. O estudo foi realizado com um grupo de idosos acima de 90 anos resistentes ao SARS-CoV-2.
Desde 2020, pesquisadores de vários países, incluindo o Brasil, buscam identificar genes que conferem proteção contra o novo coronavírus, tanto impedindo a infecção quanto favorecendo uma doença leve, na expectativa de que esse conhecimento permita o desenvolvimento de novas vacinas e tratamentos contra essa doença e outras provocadas por vírus.
“Se realmente comprovarmos que alguns genes promovem resistência ao SARS-CoV-2, isso também pode ser verdade para outros tipos de vírus. A partir disso, novos trabalhos podem buscar entender os mecanismos por trás dessa resistência e desenvolver medicamentos para aumentar a proteção das pessoas contra infecções virais”, diz a professora Mayana Zatz, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).
Em uma das pesquisas, os cientistas buscavam possíveis genes de resistência ao SARS-CoV-2 e queriam entender mecanismos envolvidos nos extremos – casos de idosos resilientes à doença, mesmo podendo ter comorbidades, em contraponto a pessoas mais jovens sem comorbidades que tiveram formas muito graves, algumas letais.
Para isso, trabalharam com uma coorte de 87 indivíduos chamados de “superidosos”, ou seja, com mais de 90 anos que se recuperaram da COVID-19 com sintomas leves ou que permaneceram assintomáticos após teste positivo para o novo coronavírus. A média de idade foi de 94 anos, sendo que uma mulher tinha, à época do estudo, 114 anos e foi considerada a pessoa com mais idade no Brasil a se recuperar da doença.
Os dados foram comparados com os de 55 pessoas com menos de 60 anos e que contraíram de forma grave ou morreram, além de uma base da população idosa geral da cidade de São Paulo, obtida por meio de banco genético.
Os pesquisadores analisaram a região do cromossomo 6, conhecida como Complexo Principal de Histocompatibilidade. Essa área tem dezenas de genes que controlam o sistema imunológico de diferentes formas, mas depende de equipamentos e ferramentas especiais para análise. Já a infecção por SARS-CoV-2 foi confirmada pelo teste RT-PCR, tendo sido as amostras coletadas no início de 2020 – antes dos programas locais de vacinação contra a COVID-19.
Os pesquisadores obtiveram três resultados importantes no trabalho, sendo que dois deles só foram possíveis por usar amostras de uma população miscigenada, como é o caso do Brasil.
Primeiro resultado
O primeiro foi que o grupo com COVID leve apresentou frequência aumentada de algumas variantes do gene MUC22, duas vezes maior do que os pacientes com casos graves e mais frequente ainda nos superidosos resilientes. Esse gene faz parte da família das mucinas e é um dos ligados à produção de muco, responsável pela lubrificação e proteção de vias respiratórias. Por outro lado, a produção excessiva desse muco já foi relacionada a doenças inflamatórias pulmonares encontradas em casos graves de COVID-19.
Segundo o estudo, essas mutações (variantes do tipo missense, que trocam aminoácido na proteína) do MUC22 podem estar reduzindo as respostas imunes hiperativas contra o SARS-CoV-2 e, com isso, desempenhando um importante papel protetor das vias respiratórias contra o vírus. Ou seja, uma hipótese é que indivíduos com melhor controle da produção da mucina talvez sejam mais resistentes.
“É possível que essa variante, classificada como missense, interfira não só na produção de muco, mas na sua composição, já que há troca de aminoácidos na proteína. Será preciso agora conduzir novos estudos para entender como ela atua durante a infecção ou em pessoas saudáveis”, explica Erick Castelli, pesquisador da Faculdade de Medicina da UNESP de Botucatu, e primeiro autor do artigo juntamente com Mateus Vidigal, pós-doutorando no Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco.
Além disso, um ponto encontrado a ser investigado é a ligação das variantes de MUC22 com o aumento de expressão do microRNA miR-6891. Em bancos de dados genéticos já foi mostrado que esse microRNA se associa ao genoma do vírus e consegue quebrá-lo. Por isso, a produção maior dessas moléculas de alguma forma poderia diminuir a reprodução do vírus dentro da célula, o que estaria relacionado à COVID leve.
Segundo resultado
Os outros dois achados da pesquisa estão ligados a variantes de genes mais frequentes em indivíduos africanos e sul-americanos, sendo um deles o alelo *01:02 do gene HLA-DOB. Por meio de análises computacionais, os cientistas perceberam que o HLA-DOB pode interferir no trânsito de alguns antígenos (pedaços do vírus) para a superfície celular.
O sistema imunológico identifica esses antígenos e cria uma resposta caso sejam “estranhos” ao organismo. Os pesquisadores detectaram que o trânsito pode estar modificado nessas proteínas de dentro da célula para a superfície, agravando a infecção. Ao comparar casos leves e graves de COVID-19, a frequência desse gene foi três vezes maior no segundo grupo.
“É a segunda vez que essa variante do HLA-DOB aparece em nossos estudos. Já a encontramos na pesquisa com os casais, onde estava associada aos casos de infecção por COVID-19 em comparação aos não infectados. Agora, ela surge nos registros graves. Só conseguimos localizá-la por causa da miscigenação da nossa amostra, com componentes de ancestralidade africana e sul-americana. Como a maioria dos estudos é realizada na Europa, dificilmente encontrarão por lá”, completa Castelli.
O pesquisador se refere a um outro trabalho publicado em 2021, com a participação dos três cientistas, que deu os primeiros passos para entender o motivo de algumas pessoas serem naturalmente resistentes à infecção pelo novo coronavírus e outras não. À época, foi analisado material genético de 86 casais em que apenas um dos cônjuges foi infectado pelo SARS-CoV-2, embora ambos tenham sido expostos sem proteção.
Os resultados sugeriram que determinadas variantes genéticas encontradas com maior frequência nos parceiros resistentes estariam associadas à ativação mais eficiente de células de defesa conhecidas como exterminadoras naturais. Quando elas são acionadas corretamente, conseguem reconhecer e destruir células infectadas, impedindo que a doença se instale no organismo.
Com importante papel na coleta das amostras, Vidigal destaca a relevância da coorte utilizada. “Trabalhamos com os extremos, não só em relação aos casos – leves, graves e que foram a óbito – como à idade, com os superidosos. Continuamos acompanhando esses pacientes e estamos desenvolvendo novos projetos com os centenários”, complementa Vidigal.
Terceiro resultado
Por fim, o terceiro resultado está ligado ao gene HLA-A, um dos principais responsáveis por criar uma espécie de “vitrine” na superfície celular, mostrando para as células de defesa quais proteínas estão dentro daquela célula. Uma variante desse gene apareceu duas vezes mais em indivíduos que apresentaram a forma grave da doença.
“Em pesquisas como essas é extremamente importante o trabalho em equipe, envolvendo genômica, imunologia, parte clínica e outras. Quando se quer responder questões complexas, é importante saber desenhar o experimento e identificar os pacientes que melhor podem ajudar a responder a pergunta. E isso não é fácil”, resume Zatz. Tamanha é essa dificuldade que uma equipe internacional de pesquisadores lançou em outubro do ano passado na revista Nature uma espécie de caçada global por pessoas geneticamente resistentes à infecção pelo SARS-CoV-2.
O artigo MUC22, HLA-A, and HLA-DOB variants and COVID-19 in resilient super-agers from Brazil pode ser lido por este link.
por Luciana Constantino | Agência FAPESP