O percentual de brasileiros adultos que se declaram assexuais, lésbicas, gays, bissexuais e transgênero é de 12%, ou cerca de 19 milhões de pessoas, levando-se em conta os dados populacionais do IBGE. É o que mostra um levantamento inédito conduzido por pesquisadores da UNESP de Botucatu e publicado na revista científica Nature Scientific Reports.
Segundo o psiquiatra Giancarlo Spizzirri, da Faculdade de Medicina da USP e autor principal do artigo, esta é a primeira vez que um levantamento do tipo é realizado em um país latino-americano. A pesquisa é fruto do pós-doutorado de Spizzirri, realizado na Faculdade de Medicina da Unesp (FMB-Unesp), em Botucatu. “A maior parte dessas pesquisas ocorrem em países como Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Nova Zelândia e Austrália”, diz o pesquisador.
O estudo buscou mapear a diversidade sexual e de gênero no país, designada pela sigla ALGBT, a partir de uma amostra representativa da população brasileira. Para isso, foram entrevistadas 6.000 pessoas maiores de idade, em 129 cidades, espalhadas nas cinco regiões do Brasil. Os questionários foram realizados pela equipe do Instituto Datafolha, entre novembro e dezembro de 2018.
Em 2019, o IBGE conduziu a primeira coleta de dados sobre orientação sexual. No levantamento, 1,8% da população adulta se declarou homossexual ou bissexual. Entretanto, o instituto não levantou dados sobre aspectos de identidade de gênero, o que envolve categorias como pessoas trans e não-binárias. Tampouco foram levantadas informações sobre outros comportamentos sexuais, como a assexualidade. O IBGE diz que tais resultados têm caráter ainda experimental e que ainda estão sendo conduzidos estudos para aprimorar a metodologia de coleta. Os dados coletados pelo IBGE foram divulgados em maio de 2022 e, desde então, não houve novas pesquisas.
Para Maria Cristina Pereira Lima, diretora da FMB-Unesp, que também participou do levantamento, a importância do estudo está em tirar grupos ALGBT da invisibilidade e permitir a elaboração de políticas públicas direcionadas às necessidades específicas dessas pessoas. “Quando você não identifica quantas pessoas pertencem a um determinado grupo em meio à população, você as invisibiliza. Isso dificulta que se estabeleçam políticas públicas para esse grupo, e que se faça um trabalho de formação de profissionais para atender suas necessidades”, comenta.
Ao comentar o levantamento, Spizzirri destaca dois resultados. O primeiro diz respeito à parcela da população categorizada como assexual, que atingiu uma taxa de 5,76% – o maior percentual dentro da comunidade ALGBT. O segundo envolve os índices de episódios de violência reportados pelos entrevistados. O estudo apontou que pessoas trans podem chegar a sofrer até 25 vezes mais episódios de violência sexual do que homens hétero cis. “Pessoas ALGBT enfrentam piores condições de vida e índices de violência mais altos. O grupo luta contra a desigualdade socioeconômica, o estigma e a discriminação. Isso tem um efeito negativo na escola e no trabalho, bem como no acesso aos serviços de saúde. Como consequência, indivíduos ALGBT têm taxas mais altas de problemas de saúde física e mental”, comentam os autores.
Segundo Spizzirri e Lima, um dos grandes diferenciais do trabalho esteve nas perguntas do questionário, elaboradas de maneira a evitar as confusões ou constrangimentos que podem surgir com os termos sobre identificação de gênero e de orientação sexual. “Muitas pessoas têm dificuldade de assumir que são homossexuais. Existem pessoas que nem sabem o que é esse termo. Além disso, há também a questão do comportamento. A pessoa pode se comportar de uma determinada maneira e não se identificar com o termo que designa esta categoria”, comenta Spizzirri.
Para contornar esses problemas, o questionário apresentou perguntas que fugiam da utilização desses termos. Ao tratar da sexualidade, os entrevistadores indagavam apenas “Você sente atração sexual por”, e o entrevistado podia escolher entre as respostas “homens”, “mulheres”, “homens e mulheres”, “homens e às vezes mulheres”, “mulheres e às vezes homens” ou “não sinto atração sexual”. O mesmo foi feito para perguntas sobre identidade de gênero. A partir da questão “Qual destas opções melhor descreve como você se sente” o entrevistador realizava uma série de perguntas para determinar a identidade de gênero do entrevistado, sem a necessidade de usar palavras como “transgênero” ou “não-binário”.
A invisibilização da assexualidade
Os resultados da pesquisa apontaram que, dentre os 12% considerados ALGBT, 5,76% são assexuais, 2,12% são bissexuais, 1,37% são gays, 0,93% são lésbicas, 0,68% são trans e 1,18% são pessoas não-binárias. É importante notar que o levantamento foi feito com base na diversidade sexual e de gênero. “Quando a gente fala de diversidade, não estamos nos referindo apenas a identidade de gênero ou a orientação sexual, por exemplo, e sim a práticas e identidades que fujam dos padrões binários e cis-hétero-normativos”, explica Spizzirri.
A transgeneridade e a não-binariedade são identidades de gênero, ou seja, fazem referência a pessoas que se identificam com gêneros diferentes dos que lhes foi atribuído ao nascer. Cisgeneridade, ou apenas “cis”, é o termo utilizado para descrever pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer. No ano passado, o Jornal da Unesp publicou uma matéria sobre outra pesquisa de Spizzirri e Lima, na qual foi feito um mapeamento de pessoas transgênero e não-binárias.
Já gay, lésbica e heterossexual são palavras que definem a orientação sexual de uma pessoa, ou seja, por quem a pessoa se sente atraída. Gays e lésbicas são pessoas homossexuais, ou seja, sentem-se atraídas por pessoas do mesmo gênero. Enquanto pessoas heterossexuais têm atração sexual por indivíduos do gênero oposto.
Entretanto, a assexualidade não se enquadra nem em orientação sexual, nem em identidade de gênero. Embora ainda haja discussões sobre como enquadrar esta expressão sexual, ela é situada no campo da diversidade. Spizzirri destaca que esse grupo é invisibilizado, mesmo nas discussões da comunidade ALGBT, e que merece ser mais bem compreendido. “Vivemos em uma sociedade que cultua muito a imagem e a sexualidade, principalmente para os jovens. Então, como a erotização está muito presente, imagino que as pessoas tendem a ocultar uma forma de experimentar a sexualidade que é distinta”, complementa Lima.
Na pesquisa, os entrevistados também podiam responder se já experimentaram atração sexual em algum momento da vida ou se nunca conheceram este sentimento. Para surpresa dos autores, esse questionamento mostrou que as pessoas consideradas assexuais correspondem ao maior percentual de indivíduos dentro da comunidade ALGBT: o equivalente a cerca de 9,5 milhões de pessoas adultas em 2018, ano do levantamento. Entretanto, Spizzirri destacou que não é possível afirmar que todas essas pessoas são, de fato, assexuais.
O pesquisador comenta que, para ter uma estimativa mais precisa do número de pessoas assexuais, são necessários mais estudos para melhor conhecer a comunidade e investigar como esses indivíduos se autoidentificam, uma vez que a atração sexual sofre a influência de inúmeros fatores. Vale lembrar que pessoas assexuais não necessariamente abriram mão de se envolverem afetivamente e/ou romanticamente com outra pessoa.
Dentre os resultados, as mulheres representam a maioria das pessoas consideradas assexuais pelo estudo, correspondendo a 93,5% do grupo. Porém, o levantamento também apontou que, em 82,3% dos casos, mulheres assexuais informaram já ter sentido atração sexual. Já 1,1% dos entrevistados, entre homens e mulheres, apontaram nunca ter sentido atração sexual.
A pesquisa também demonstrou que a comunidade ALGBT está distribuída de maneira regular ao longo das regiões do Brasil. Além disso, não há grandes diferenças entre a quantidade de pessoas nas capitais e no interior. Essa constatação contrariou a suposição inicial de Spizzirri, que achou que encontraria uma maior diversidade sexual e de gênero nas capitais.
Comunidade ALGBT é a que mais sofre violência sexual
Além de mapear a população ALGBT no Brasil, o questionário também levantou informações sobre episódios de violência experimentados pelos grupos. A última pergunta da entrevista dava ao entrevistado a oportunidade de informar se já sofreu algum tipo de violência psicológica, verbal, física ou sexual, ou se nunca tinha sofrido nenhum tipo de agressão.
Segundo os autores, a falta de levantamentos sobre a comunidade ALGBT impede a apuração de números precisos sobre casos de violência. O estudo demonstrou que, dentre os quatro tipos de violências levantadas, homens hétero cisgênero são os que mais reportaram sofrer violência física. Pessoas transgênero foram as que mais reportaram ter sofrido violência psicológica, enquanto indivíduos não-binários são os que mais sofrem com violência verbal. Entretanto, os números mais impressionantes estão relacionados à violência sexual.
Quando comparado com as respostas de homens hétero cisgênero, as mulheres hétero cisgênero reportaram sofrer quatro vezes mais episódios de violência sexual, e as mulheres assexuais, aproximadamente cinco vezes mais. Mulheres lésbicas relataram seis vezes mais episódios de violência sexual, e mulheres bissexuais, 12 vezes mais. Por fim, pessoas trans relataram 25 vezes mais episódios de agressões sexuais em comparação a homens cisgênero. “Por um lado, podíamos supor que haveria diferenças relevantes entre os grupos avaliados. Mas a magnitude dessa diferença referente à violência sexual é o mais preocupante”, comenta Spizzirri.
A expectativa dos pesquisadores é que o trabalho sirva como inspiração inicial para que cada vez mais levantamentos sobre a comunidade ALGBT sejam elaborados posteriormente. Esses dados são fundamentais tanto para delinear políticas públicas quanto para possibilitar futuros estudos direcionados a parcelas especificas da comunidade ALGBT. “Esses levantamentos têm caráter científico, mas também cumprem um papel político e social”, diz Lima.
com informações do Jornal da UNESP