Foto: Reprodução/Alberto Lopes Leiloeiro

Há 50 anos, morria Dom Henrique Golland Trindade, primeiro arcebispo de Botucatu

Há cinquenta anos, em 6 de novembro de 1974, morria o bispo Dom Henrique Golland Trindade. O sacerdote comandou a diocese de Botucatu por vinte anos, entre 1948 e 1968. Ele foi o seu primeiro arcebispo, quando a diocese foi elevada a arquidiocese, em 1958. Saiba mais sobre sua história na matéria abaixo, baseada no artigo Dom Frei Henrique Golland Trindade e a recepção do Vaticano II na Arquidiocese de Botucatu, de autoria dos pesquisadores Ney de Souza e Reuberson Rodrigues Ferreira.

Da infância à vida religiosa: de Heitor a Henrique

Heitor Ascensão Golland Trindade nasceu em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, filho de Joaquim da Cunha Trindade e Henriqueta Golland Trindade. Este menino, que mais tarde se tornaria o quarto bispo e primeiro arcebispo de Botucatu (SP) com o nome de Dom Frei Henrique Golland Trindade, nasceu em 27 de maio de 1897, no seio de uma família tradicional, numerosa e bem-sucedida. Ele era o nono de dez filhos, nascido de mãe com ascendência inglesa e pai de origem portuguesa, ambos de famílias que viviam há gerações em Porto Alegre.

Os pais de Heitor, católicos fervorosos, frequentavam a Catedral da diocese do Rio Grande do Sul, dedicada a Nossa Senhora Madre de Deus, no centro de Porto Alegre. Foi nessa igreja que batizaram seu nono filho em 27 de novembro de 1897, quando ele completava seis meses de vida. O batismo de Heitor reflete bem a religiosidade devocional da família Golland Trindade. Pouco antes de o menino nascer, seu pai, Joaquim, prometeu que, se o filho nascesse com saúde, teria como padrinhos a Virgem Maria e uma pessoa genuinamente pobre. Assim, no dia do batismo, foram escolhidos como padrinhos Nossa Senhora, em homenagem ao título da catedral, e Pedro Móyses, um beneficiado da obra “Pão de Santo Antônio” da Igreja Matriz, escolhido aleatoriamente pelo pai no momento da celebração.

A família Golland Trindade carregava uma forte herança de piedade, marcada pela tradição cristã. Embora possuíssem meios para escolher padrinhos abastados entre seus amigos, optaram por um gesto de caridade, refletindo uma consciência voltada para os pobres, não no sentido de justiça social, mas em uma lógica de retribuição, onde a ajuda aos necessitados traria as bênçãos de Deus.

Na infância, Heitor se mudou para São Leopoldo, onde iniciou sua educação primária e recebeu o sacramento da Eucaristia aos sete anos. Anos depois, voltou a Porto Alegre e, sob orientação dos jesuítas, cursou o Ginásio, onde participou de associações piedosas, como a Congregação Mariana. Recebeu ainda o sacramento da Crisma do bispo Cláudio José Ponce, da congregação Lazarista, também em Porto Alegre.

Em 1913, a vida de Heitor sofreu um impacto com o falecimento de seu pai, Joaquim da Cunha Trindade, coincidindo com o despertar de sua vocação religiosa. Após um período de reflexão, deixou a Escola Superior de Engenharia e, influenciado por sua educação junto aos jesuítas, ingressou no noviciado da Companhia de Jesus em Itu, interior de São Paulo, à época pertencente à arquidiocese de São Paulo.

Após quatro anos em Itu, Heitor foi encaminhado ao escolasticado da ordem em Florianópolis, onde teve contato próximo com a Ordem dos Frades Menores e se sentiu atraído pelo carisma franciscano, especialmente pelo espírito de pobreza. Após conversar com seus superiores jesuítas, decidiu ingressar na ordem franciscana.

Aos 25 anos, Heitor vestiu o hábito franciscano em Rodeio, no dia 22 de março de 1922, um ano emblemático na história do Brasil. Ele então adotou o nome Henrique Golland Trindade, OFM, possivelmente em homenagem a Frei Henrique de Coimbra, que celebrou a primeira missa no Brasil, sacramento ao qual Dom Frei Henrique dedicaria grande parte de sua vida. Esse nome também carregava um vínculo afetivo com sua mãe e uma de suas irmãs, ambas chamadas Henriqueta.

No fim de 1922, Frei Henrique emitiu os primeiros votos na nova ordem e continuou seus estudos de Filosofia e Teologia entre Curitiba e Petrópolis. Em 1926, professou seus votos perpétuos e foi ordenado sacerdote em Petrópolis, em 18 de dezembro, pelo bispo Dom Agostinho Benassi, da diocese de Niterói, Rio de Janeiro.

Vida religiosa e sacerdócio: entre a academia, a pobreza e a vida interior

Henrique Golland Trindade viveu sua vida religiosa e sacerdotal em equilíbrio entre o carisma de Inácio de Loyola e o de São Francisco de Assis. Sua formação humanística e os primeiros anos na vida religiosa ocorreram sob a orientação da Companhia de Jesus. No entanto, o estilo de vida franciscano o atraiu e, ao adotar o hábito dos frades menores, ele encontrou uma síntese entre a pobreza franciscana, o cultivo da vida interior e uma vibrante atividade acadêmica.

No início de sua trajetória, Frei Henrique foi nomeado professor no Colégio Seráfico de São Luís de Tolosa, em Rio Negro, Paraná, onde também atuou como prefeito dos alunos. Esse colégio formou importantes franciscanos, incluindo o teólogo Leonardo Boff e o cardeal Evaristo Arns. Arns, ao recordar especialmente a Academia Antoniana fundada por Frei Henrique, destacou que ele deixou um legado valioso como artista, escritor e dramaturgo, além de fortalecer vocações religiosas e inspirar o senso artístico em muitos jovens. Após cinco anos contribuindo para a formação de futuros franciscanos, em 1932, a pedido de seus superiores, Frei Henrique foi transferido para Petrópolis, que era um centro acadêmico e editorial de sua ordem.

Em Petrópolis, na serra do Rio de Janeiro, Frei Henrique assumiu a edição de quatro periódicos franciscanos: Vozes, Eco Seráfico, Arauto e Voz de Santo Antônio. Esse período marcou uma fase de intensa produção intelectual, com o objetivo de formar e informar seus leitores, que incluíam sacerdotes, religiosos e leigos. Durante esse tempo, ele também publicou pequenos livros que enriqueceram sua produção literária. Em 1938, lançou um opúsculo chamado Sigamos a Missa, que refletia sua preocupação em promover a participação ativa dos leigos na missa. O livreto oferecia uma forma fácil e devota de acompanhar o santo sacrifício da missa, alcançando grande sucesso e popularidade, com mais de trinta edições. Com linguagem pastoral e acessível, ele buscava ajudar os fiéis a compreenderem o sentido espiritual da celebração eucarística. Seu pioneirismo estava em oferecer material acessível e de baixo custo, similar ao missal, que facilitava a participação na missa.

Ainda em 1938, seus superiores o nomearam Guardião do Convento de Guaratinguetá. Durante esse período, ele pregou retiros e publicou obras de espiritualidade e catequese sobre a missa, especialmente para crianças. Contudo, essa etapa foi breve, durando apenas dois anos. No final de 1940, ele foi transferido novamente, desta vez para o Convento de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, Rio de Janeiro, onde chegou no início de 1941.

A permanência de Frei Henrique no convento de Ipanema foi curta, pois, em março de 1941, ele foi nomeado bispo. Ele foi escolhido pelo Papa Pio XII como segundo bispo da Diocese de Bonfim, na Bahia, sucedendo a Dom Hugo Bressane, com quem futuramente colaboraria na Província Eclesiástica de Botucatu, onde Dom Henrique atuaria como metropolita e Dom Hugo como bispo de Marília, São Paulo.

Sua ordenação episcopal ocorreu em 8 de junho de 1941, na Festa da Santíssima Trindade, na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, então catedral metropolitana do Rio de Janeiro. O cardeal Sebastião Leme foi o ordenante, com Dom Benedito Alves de Souza e Dom Frei Inocêncio Engelke como co-ordenantes. Marcaram presença na celebração figuras religiosas significativas, incluindo o superior dos Jesuítas, o Abade do Mosteiro de São Bento, o reitor do seminário do Rio de Janeiro e Alceu Amoroso Lima, que discursou no almoço festivo. Após a ordenação, no dia da Assunção de Nossa Senhora, Frei Henrique assumiu seu posto como bispo da Diocese de Bonfim, onde permaneceria por sete anos.

Episcopado em Bonfim: zelo pela liturgia e compromisso social

A chegada ao interior da Bahia marcou o início do ministério episcopal de Dom Frei Henrique Golland Trindade. Pouco antes de sua ordenação, ele escreveu sua primeira carta pastoral, intitulada Corações ao Alto!, dirigida aos fiéis de sua diocese, como era costume na época. Esse breve texto, que leva o nome de seu lema episcopal, marcou o primeiro contato com a comunidade católica do centro-norte do estado da Bahia.

Na carta, Dom Henrique delineou seu programa pastoral para o bispado, que agora era sua missão pastorear. Partindo da constatação de que parte dos fiéis da época vivia sem dar a devida importância à vida espiritual e estava envolvida apenas com preocupações materiais, ele convocou os diocesanos a elevarem seus “corações ao alto” (Sursum Corda), em sintonia com “as intenções de Deus, do Evangelho, da Igreja e do Papa”. Para promover essa elevação espiritual, Dom Henrique propôs a instrução religiosa (catecismo), uma vida de oração (missas, oratórios, rosários e via-sacra), a prática dos sacramentos, a leitura de impressos católicos, a participação na Ação Católica e o incentivo às associações e irmandades religiosas.

O programa pastoral de Dom Henrique reflete a mentalidade eclesiástica de sua época, com ênfase na busca por Deus através da mediação da Igreja e oposição às influências do mundo. Suas recomendações, que variavam entre a instrução religiosa e a prática sacramental, apontavam para um modelo de Igreja romanizada. Algo singular em seu plano era a sugestão de que, em toda a diocese, fossem realizadas “missas dialogadas em vernáculo”, algo que ele já havia defendido em seu livro Sigamos a Missa. Outro ponto importante era o incentivo à Ação Católica, que, embora já atuante em outras dioceses do Brasil, ainda não era uma realidade consolidada em Bonfim. No entanto, sua carta não mencionava a questão social ou a situação de pobreza do sertão baiano.

Em sua diocese, Dom Henrique trabalhou para consolidar a atuação leiga na Ação Católica, que ele via como um meio para “despertar nos leigos bem-intencionados o desejo genuíno de serem úteis à Igreja, atuando sob a direção dos bispos e de seus assistentes eclesiásticos”. Para ele, a Ação Católica deveria ser um braço da hierarquia eclesiástica para promover o apostolado, sendo o protagonismo leigo subordinado à ação do clero, conforme a visão da época.

Durante os sete anos em que esteve à frente da Diocese de Bonfim, Dom Henrique empenhou-se na melhoria da vida litúrgica e religiosa da comunidade do sertão baiano. Em sua última carta pastoral, ele destacou seu trabalho na promoção de celebrações “explicadas, dialogadas e recitadas”, além de incentivar “missas para crianças, assistidas de modo ativo e inteligente”. Também favoreceu a realização de “pequenas missões em forma de retiros” para adultos e crianças, que considerava mais produtivas no âmbito catequético.

Chegada a Botucatu, Vaticano II e renúncia

Em 1948, após dois anos de vacância, Dom Henrique Golland Trindade foi designado para o Bispado de Botucatu, trazendo consigo a experiência adquirida em sua missão pastoral na Bahia. Carregava o ideal de uma comunidade eclesial onde o laicato tivesse participação ativa, conforme o espírito da Ação Católica, além de valorizar a participação nas missas e o acolhimento aos mais frágeis. Esse propósito guiou seus primeiros anos de trabalho pastoral no noroeste de São Paulo.

Sua primeira carta pastoral em Botucatu, intitulada *Não nos iludamos e trabalhemos*, revela esse compromisso. Dom Henrique faz observações sinceras e provocativas sobre a situação da Igreja local, que refletem, em parte, um diagnóstico da realidade brasileira. Ele critica o valor excessivo dado a eventos eclesiásticos em grande escala — procissões, missas, batismos, comunhões gerais —, que, embora numerosos, dizem pouco sobre a profundidade da fé vivida.

Para transformar essa realidade, o bispo propôs formar o povo por meio do catecismo, da imprensa católica, dos retiros, missões e sacramentos. Enfatizou a importância da participação ativa na Eucaristia, com missas dialogadas e a observância do domingo como dia sagrado, tema de uma carta pastoral posterior. Também reafirmou a necessidade de zelar pela moralidade e de expandir as obras caritativas, incentivando a Juventude Operária Católica (JOC) e os Círculos Operários em toda a diocese.

Embora as propostas não avançassem muito em relação ao que já havia feito em Bonfim, Dom Henrique continuou aplicando a mesma visão pastoral, alinhada com as diretrizes do papado e o modelo romanizador da Igreja. Em Botucatu, contudo, ele deu especial atenção aos movimentos bíblicos, litúrgicos e de assistência social, ajustando-se gradualmente às mudanças da Igreja ao longo dos anos que antecederam o Concílio Vaticano II.

Na década de 1950, quando a Igreja Católica no Brasil começou a enfrentar questões sociais, como a reforma agrária, a diocese de Botucatu também foi afetada. A carta pastoral de Dom Inocêncio Engelke, co-ordenante de Dom Henrique, foi influente nesse processo, inspirando bispos como Dom Henrique a promover um apostolado social. Ele foi pioneiro na renovação da pastoral rural, incentivando o clero, as religiosas e os leigos a se dedicarem à Ação Católica em apoio às comunidades rurais.

Em 1958, durante o cinquentenário da Diocese de Botucatu, Dom Henrique publicou a carta pastoral *A Diocese somos nós, são as almas*, que trouxe uma nova perspectiva litúrgica e enfatizou uma dimensão cristocêntrica da fé. Ele destacou a missa como encontro comunitário em Cristo e defendeu que as práticas devocionais fossem auxiliares da fé em Cristo. No aspecto eclesiológico, sob influência da encíclica *Mediator Dei*, reiterou a responsabilidade da hierarquia eclesiástica na condução da Igreja, delegando ao laicato um papel de suporte.

Um ano após essa carta, João XXIII anunciou o Concílio Vaticano II, e Dom Henrique, como arcebispo de Botucatu, participou da Assembleia Conciliar. Em seu Votum para o Concílio, propôs uma Igreja humilde, firme em seus princípios e testemunha de caridade. Durante o Concílio, ele fez cinco intervenções, abordando temas como vestes litúrgicas, eclesiologia, ecumenismo e a missão social da Igreja, defendendo uma Igreja que fosse pobre e servidora.

Após o Concílio, já debilitado em sua saúde, Dom Henrique renunciou ao arcebispado em 1968, sendo sucedido por Dom Marchetti Zioni Filho, de Bauru. Sua nomeação, no entanto, gerou oposição e resultou em uma divisão no clero de Botucatu, com a saída de diversos padres e a nomeação de um administrador diocesano. Em 1969, Dom Zioni assumiu o arcebispado em meio a essa transição, imprimindo novas direções pastorais.

Cinco anos após sua renúncia, Dom Henrique faleceu em 6 de novembro de 1974, aos 77 anos, no Convento das Irmãs Servas do Senhor, devido a uma esclerose múltipla. Foi sepultado na catedral de Sant’Ana, que ele remodelou e dedicou. Sua vida e legado refletem um alto nível cultural, profunda atenção à liturgia, zelo franciscano pelos pobres e o ideal de uma Igreja pobre, manifestados tanto em seus textos quanto em suas ações.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *