A vida de São Cipriano, cuja festa foi celebrada neste último sábado (2), é envolta por mistérios. Pouco se sabe sobre a trajetória do “santo feiticeiro”, e as poucas informações que temos são de origem incerta. Por causa disso, duas visões distintas divergem sobre a sua história: a hagiografia católica e a tradição oral mística.
A visão católica
“A história dos santos da Igreja Católica é passada inicialmente através da oralidade, em seguida por meio de documentos e livros que tratam do tema”, diz o historiador católico Tiago Paixão.
Segundo a historiografia oficial da Igreja Católica, a história de Cipriano se relaciona com a história de Santa Justina, virgem e mártir. Na cidade de Antioquia, uma jovem chamada Justa ouvia as pregações do diácono Praílio e se interessava pela religião cristã.
Profundamente emocionada, Justa contou à sua mãe Cledônia sobre o que costumava ouvir. Esta, por sua vez, contou ao seu marido, Edésio, que não sabia como lidar com a situação.
Eis que o próprio Jesus Cristo lhe apareceu e disse: “Vinde a mim, e dar-vos-ei o reino dos céus”. Edésio, impressionado, assim que amanheceu, tomou a esposa e a filha e foi apresentar-se ao diácono para serem batizados.
A jovem Justa frequentava assiduamente a igreja, onde conheceu Aglaida, jovem pagão que se interessou por ela e pediu-a em casamento. Justa, porém, rejeitou o pedido e disse que desejava permanecer na virgindade, porque julgava que naquele estado agradaria mais a Deus.
Foi assim que Cipriano apareceu em cena. O bruxo foi procurado pelo preterido, para que, com as artes mágicas que conhecia, conseguisse atrair a jovem Justa para si. São Cipriano foi introduzido aos segredos da astrologia, superstição e feitiçaria por seus próprios pais. Em seus rituais, ele fazia sacrifícios de crianças e, usando de feitiçarias, perseguia as donzelas para afastá-las do caminho das virtudes.
Para atender ao pedido de Aglaida, Cipriano invocou um demônio, que lhe deu uma poção para ser espalhada ao redor da casa da virgem filha de Cledônia. Esta magia seria infalível e levaria a jovem a apaixonar-se por Aglaida.
Justa, ao sair para ir à igreja, assim que pôs um dos pés fora de casa, sentiu que o demônio estava por perto. Imediatamente fez o sinal da cruz sobre si mesma, depois sobre a casa, e o diabo não teve outro recurso senão afastar-se e ir falar a Cipriano do insucesso.
Cipriano, então, invocou outro espírito do mal mais poderoso, mas, também este não obteve qualquer resultado – foi vencido assim como o primeiro. Admirado, o mágico lançou mão do extremo: invocou o pai dos demônios, o qual lhe prometeu que, dentro de seis dias, teria a Justa para o que ele quisesse.
O demônio se apresentou a ela como uma jovem que Nosso Senhor lhe enviara para viver a mesma vida santa que levava. Ao chegar, a moça disfarçada perguntou a Justa: “Que recompensa esperas tu, guardando assim a virgindade? Eu te vejo exaurida pelos jejuns”.
Ela respondeu: “A pena é ligeira, a recompensa é imensa”. O diabo, sutilmente, citou um trecho bíblico: “No princípio, Deus abençoou Adão e Eva, e disse-lhes: ‘Crescei, multiplicai-vos e enchei a terra’. Ora, parece-me que, se perseverarmos na virgindade, desprezaremos, por isto, a palavra de Deus, e acabaremos por ser tratadas como rebeldes no julgamento”.
Com isso, Justa perturbou-se, mas logo se armou de coragem, orou fervorosamente à Virgem Maria e, fazendo o sinal da cruz, soprou sobre o demônio, que fugiu precipitadamente.
Depois que o pai dos demônios deixou Cipriano a par do ocorrido, o mágico ficou cismado com o poder que tem a cruz, que se sobrepõe aos poderes infernais. Então, de fato, o Crucificado era mais poderoso?
Assim pensando, decidiu que jamais havia de ter parte com o demônio, e mandou-o embora. Ora, o diabo não queria, de forma alguma, privar-se daquela alma. E, num salto, tentou apoderar-se do convertido. Cipriano, porém, fazendo o sinal que lhe salvara a alma, expulsou o maligno da sua presença.
Comovido, Cipriano procurou o bispo Antêmio para que lhe desse instruções sobre a religião cristã. Desta forma, o ex-mágico passou a frequentar a igreja, onde ouvia atentamente as leituras e as homilias do bispo.
Percebendo a resistência do bispo diante da sua conversão, Cipriano trouxe todos os seus livros cabalísticos e os queimou na frente de todo povo. Em seguida, distribuiu sua fortuna entre os pobres.
Um dia, depois que tudo terminou na igreja e todos saíram, foi o diácono Astério fechá-la quando se encontrou com Cipriano. Admirado, disse-lhe: “Cipriano, levanta-te e sai”. E ele respondeu: “Tornei-me servidor do Cristo, disse ele humildemente, e tu me mandas sair?”. Informado do caso, o bispo batizou emocionado o catecúmeno. Juntamente com ele, Aglaida também recebeu o santo batismo.
Oito dias depois, Cipriano era feito leitor. Passados vinte e cinco, subdiácono. Cinquenta dias mais tarde, era diácono e, depois de um ano, tornou-se padre. Decorridos seis anos, pressentindo seu fim, Antêmio fê-lo seu sucessor.
Justa, vendo as maravilhas da divina graça, cortou os cabelos e fez o voto de virgindade perpétua dedicando-se ao serviço de Deus.
Sagrado bispo, Cipriano elevou a virgem Justa a abadessa, mudando-lhe o nome para Justina, e deu-lhe um mosteiro a dirigir. Desde que se viu à frente da diocese, Cipriano primou por combater toda a sorte de heresias.
Diz a história que São Cipriano e Santa Justina morreram mártires, pela perseguição do imperador romano Diocleciano. Presos por ordem de Eutórmio, conde do Oriente, foram levados para Damasco. Depois de longo interrogatório, firmes na fé, Cipriano foi rasgado e Justina chicoteada. Há uma versão que nos diz que os dois santos, sendo atirados numa caldeira de azeite fervendo, nada sofreram.
Enviados a Nicomédia, onde então se encontrava Diocleciano, foram condenados à decapitação no ano de 304. Os corpos, recolhidos por marinheiros cristãos, foram levados para a basília Constantiniana, em Roma, onde foram sepultados próximo ao batistério e, tempos depois, suas relíquias foram transportadas para a Basílica de São João de Latrão.
A visão mística
“Toda a tradição mística é através da oralidade, passada através dos séculos. A exceção disso é justamente os livros que são guardados”, diz o Ogã João Ricardo. Desde jovem, João foi iniciado no livro de São Cipriano através de uma tradição familiar, o que lhe tornou íntimo e leitor frequente da obra.
Segundo a tradição mística, São Cipriano era um bruxo muito poderoso e tinha contato direto e frequente com uma entidade sem luz, chamada comumente pelo cristianismo de Diabo. “Se houvesse uma hierarquia dos seres ‘fora da lei’, esta entidade estaria no topo de todas elas”, diz João.
Muitas magias que ele desenvolveu foram dadas através desta entidade. Ele, inclusive, teria conhecido a folclórica Bruxa de Évora, com quem trocava conhecimentos.
Ele era conhecido como “o bruxo do impossível”, contratado pelos poderosos da época para resolver pendências de todos os tipos, desde demandas complicadas até tarefas que eram impossíveis para os meios comuns. Desta forma, cada vez mais o feiticeiro desenvolvia magias e poções por meio da entidade sem luz.
Deste modo que Cipriano ganhava a vida, recebendo altas remunerações pelos desejos atendidos. Com isso, ele podia incrementar seu acervo de magias e fazê-lo crescer mais e mais, até conquistar tudo o que sonhava.
Porém, Cipriano tinha muitos problemas com sua sexualidade – que hoje seria classificado como ninfomania ou desejo sexual hiperativo – e foi um fator que o desequilibrava espiritualmente. É possível que isto tenha acontecido devido à sua entidade, que era como um espírito obsessor.
Certa feita, São Cipriano foi contratado por um rei e, durante o trabalho, encontrou uma jovem donzela virgem por quem sentiu necessidade de persuadir. Ele usou todas suas magias para conquistá-la, inclusive com o auxílio da Bruxa de Évora, mas sem sucesso.
Então, Cipriano se deparou com uma situação que não conseguia resolver. Ele invocou sua entidade, que lhe disse que aquela moça “não pertencia a ele, mas ao Outro”. Neste momento, ele entendeu que existia alguém muito mais forte do que aquele a quem ele servia.
Neste momento, houve uma guinada em sua vida. São Cipriano de Antioquia, que até o momento praticava magia negra, converteu-se ao bem e passou a praticar magia branca. Ele abandonou todas suas práticas malignas, inclusive rejeitando vários pedidos de mágicas que chegavam a ele.
Após sua conversão, a história diz que o ex-feiticeiro se aproximou daquela donzela, com quem casou-se e foi o grande amor de sua vida até sua morte.
O livro e seus perigos
Seus amigos e demais pessoas próximas guardaram todos os pergaminhos do “passado negro” de Cipriano. Estes documentos, embora não seja possível atestar sua autenticidade por serem compilados após a morte do autor, foram reunidos no famoso Livro de Capa Preta de São Cipriano.
Até os dias de hoje, as magias de São Cipriano são tidas como muito poderosas no mundo místico. No entanto, muitos materiais que ele utilizava não são de fácil acesso atualmente, inviabilizando boa parte das simpatias.
Além disso, o livro sofreu alterações ao longo dos anos. “Como o livro se tornou comercial, ele tem de ser desejado, e nem tudo o que estava escrito inicialmente é necessariamente entendível e desejado no atual momento”, diz João.
Ainda assim, o livro carrega uma forte vibração e, por isso, não pode ser lido de qualquer forma. “Muita gente lê somente a parte das magias, mas não entende que existe uma lei maior. Existem muitos relatos de pessoas que ficam loucas, achando que se tornaram deuses e tudo podem, e acaba mexendo com o psicológico”.
“Grande parte das iniciações do livro levam ao sexo, ao ato carnal. Como o desequilíbrio em relação a isso é muito grande nos dias de hoje, as pessoas buscam artifícios que tragam vantagens para elas em relação a isso”, conclui.
Estes alertas para a leitura do livro também se estendem ao catolicismo. “A Igreja adverte ao fiel a evitar qualquer tipo de magia e adivinhação pois são gravemente contrárias à prática da religião católica”, diz Tiago. O Catecismo da Igreja Católica aponta, nos parágrafos 2116 e 2117:
Todas as formas de adivinhação devem ser rejeitadas: recurso a Satanás ou aos demônios, evocação dos mortos ou outras práticas supostamente «reveladoras» do futuro. A consulta dos horóscopos, a astrologia, a quiromancia, a interpretação de presságios e de sortes, os fenómenos de vidência, o recurso aos “médiuns”, tudo isso encerra uma vontade de dominar o tempo, a história e, finalmente, os homens, ao mesmo tempo que é um desejo de conluio com os poderes ocultos. Todas essas práticas estão em contradição com a honra e o respeito, penetrados de temor amoroso, que devemos a Deus e só a Ele.
Todas as práticas de magia ou de feitiçaria, pelas quais se pretende domesticar os poderes ocultos para os pôr ao seu serviço e obter um poder sobrenatural sobre o próximo – ainda que seja para lhe obter a saúde – são gravemente contrárias à virtude da religião. Tais práticas são ainda mais condenáveis quando acompanhadas da intenção de fazer mal a outrem ou quando recorrem à intervenção dos demônios. O uso de amuletos também é repreensível. O espiritismo implica muitas vezes práticas divinatórias ou mágicas; por isso, a Igreja adverte os fiéis para que se acautelam. O recurso às medicinas ditas tradicionais não legitima nem a invocação dos poderes malignos, nem a exploração da credulidade alheia.
Independentemente das diferenças entre as duas visões, é ponto pacífico que o santo celebrado neste último sábado é dotado de uma importância imensa para a vida espiritual: seja como santo para os católicos, seja como mestre para os místicos.